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A tendência de instabilidade e empobrecimento da economia argentina está associada às dificuldades de o governo financiar gastos elevados.
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As discussões sobre uma eventual moeda única com a Argentina tiveram grande impacto entre os investidores no começo do ano. A ideia trouxe desconforto não apenas por sugerir o abandono do Real, símbolo de estabilidade, mas também pela aproximação de uma economia altamente instável.

O episódio mostra como as duas economias se distanciaram ao longo do tempo. O interessante é que parte da instabilidade argentina está associada à crença de que o Estado possui um papel central na economia, com a despesa do governo sendo supostamente responsável pelo crescimento e a distribuição de renda.

Esta visão ganhou força nos anos 1950, quando os fortes estímulos fiscais ocorreram em um momento favorável do ciclo global, beneficiando economias exportadoras como a Argentina. O problema é que, como mostra a pesquisa de Daniela Campello e Cesar Zucco, é sempre difícil para eleitores e políticos separar fatores externos e internos do crescimento.

E foi isso o que aconteceu naquele momento. Os bons números econômicos e sociais foram associados mais a questões domésticas, como a agenda de governo, que ao ambiente externo. O resultado é que a expansão econômica e a novidade de um estado de bem-estar social do pós-guerra marcaram profundamente a sociedade e a cultura política argentina, explicando parte da polarização a partir daí. As disputas em torno do papel do Estado foram reforçadas nos anos 2000, quando o ciclo de commodities e as políticas públicas novamente se confundiram na leitura sobre as causas do crescimento.

Estímulos fiscais prolongados, no entanto, são uma estratégia arriscada e desaconselhada por boa parte da literatura acadêmica. Além dos vários exemplos de falhas de governo estudados pela teoria da Escolha Pública, a tese de ciclos fiscais do economista Vito Tanzi mostra como o gasto público pode levar a crises de dívida e aos chamados ciclos de euforia e colapso.

A ideia é que, nas fases de crescimento, estímulos fiscais podem levar a excessos, causando gargalos e inflação. Passada a euforia, os momentos desfavoráveis derrubam a arrecadação e as restrições institucionais, políticas e ideológicas dificultam o aumento da carga tributária e o ajuste das despesas. A consequência é o endividamento público e a piora das condições financeiras, o que pode gerar colapsos econômicos e políticos. O aprendizado é que o aumento de gastos funciona bem em uma situação particular, quando a economia tem ociosidade, os juros são baixos e a dívida do governo é reduzida.

Na experiência argentina, os ciclos fiscais foram ampliados com o fracasso do plano de estabilização dos anos 1990, o currency board. Naquele momento, o desequilíbrio fiscal alimentou o temor de que a paridade da moeda com o dólar não seria mantida, levando a uma corrida aos bancos e ao bloqueio dos depósitos em conta. A crise produziu uma queda duradoura na credibilidade do sistema bancário.

Desde então, a pouca confiança nos bancos fez com que os mercados de crédito e de títulos públicos passassem a ter pouca profundidade e dificultassem o acesso à poupança doméstica para financiamento dos gastos do Estado. Restou ao governo a saída de se financiar por meio do mercado externo e de compras de títulos pelo banco central.

Esta estratégia, no entanto, implica emissão monetária e pressão no mercado cambial, dada a maior exposição da economia às oscilações globais em um contexto de baixo nível de reservas internacionais. Vale lembrar que o default na dívida externa no início dos anos 2000 impediu que a Argentina se beneficiasse plenamente da liquidez gerada pelo ciclo de commodities do período. Além disso, a escassez crônica de dólares tem sido agravada pelo fato de o setor exportador ser fonte preferencial de taxação e controle de preços, contribuindo para desequilibrar as contas externas.

O Brasil é um exemplo de como as reservas importam. Ao manter os compromissos externos nos anos 2000, a economia brasileira surfou melhor a fase de alta dos preços de matérias primas, permitindo que os fluxos financeiros e comerciais elevassem as reservas de um patamar de US$ 50 bilhões em 2003 para os atuais US$ 330 bilhões. Com isso, o balanço de pagamentos deixou de ser uma restrição, a vulnerabilidade externa se reduziu e, nas crises, os menores impactos sobre câmbio e inflação abriram espaço para políticas anticíclicas, suavizando a volatilidade do crescimento.

É exatamente a dificuldade de o governo argentino financiar despesas crescentes que explica a recorrência de crises de inflação e dívida. A questão é que esta instabilidade leva a desdobramentos relevantes.

Nos últimos 20 anos, a inflação média argentina foi três vezes superior à brasileira e o peso deixou de ser reserva de valor, cumprindo com dificuldades suas funções de unidade de conta e meio de pagamento. A persistência de taxas elevadas de inflação, por sua vez, criou uma cultura de convivência com a alta de preços, o que reduz os incentivos para maior responsabilidade na gestão econômica.

No caso da dívida externa, os defaults de 1982, 2002 e 2019 comprovam a tese de Kenneth Rogoff, segunda a qual o fato de o custo político doméstico do ajuste fiscal ser maior que o ônus do não pagamento a credores externos ajuda a entender por que alguns países são pouco tolerantes à dívida, optando pelo não cumprimento de contratos. Este é o caso argentino, percebido por meio de patamares de risco soberano persistentemente mais elevados que a média dos principais países latino-americanos, à exceção da Venezuela. Na prática, isso equivale a um maior custo de crédito para o governo.

As crises frequentes de inflação e dívida, por fim, reduzem a estabilidade e previsibilidade econômica, atrapalhando o crédito, o investimento e o crescimento. Não por outro motivo, a Argentina deixou de ser uma das economias mais ricas do mundo e, desde os anos 1950, há um processo de contínuo empobrecimento que alimenta um histórico político de instabilidade e violência. A comparação com o Brasil novamente chama atenção. Com tamanhos parecidos nos anos 1980, a economia argentina é hoje cerca de 25% da brasileira.

O aprendizado, portanto, é que a construção de bons regimes fiscais e monetários fazem diferença e a experiência argentina não deixa de ser um alerta para os atuais debates sobre política econômica no Brasil.

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