Os testes a que foram submetidas a autonomia do Banco Central fortaleceram o ambiente institucional e permitem construir um cenário de maior estabilidade econômica.
Roberto Padovani
06 de setembro 2024
A independência formal do Banco Central (BC) vem sendo testada nos últimos meses. Aos poucos, sua importância se consolida como um importante avanço institucional do país.
A lógica da autonomia é evitar o aparelhamento da administração pública em suas áreas centrais. Na gestão econômica, a menor influência dos ciclos políticos permite mais estabilidade, previsibilidade e crescimento.
Mas apesar de seus benefícios teóricos, as implicações práticas deste novo desenho institucional ainda estão sendo conhecidas no Brasil. O lado bom é que a cada novo desafio, as vantagens de um BC independente vão ficando mais claras.
Desde o final de 2022 foram, pelo menos, três testes importantes. O primeiro ocorreu durante a eleição presidencial. Tão logo o período eleitoral foi superado, um novo desafio foi enfrentado com os duros ataques à instituição. Neste momento, a transição no comando do BC é mais um teste a ser superado.
O saldo, no entanto, parece positivo. Na experiência eleitoral de 2022, pela primeira vez a política monetária não fez parte dos discursos de campanha. O período foi acompanhado por relativa tranquilidade financeira e econômica, mesmo diante das incertezas associadas à transição de governo.
Da mesma forma, as críticas do Executivo feitas no início de mandato foram importantes. Acabaram coordenando a agenda de parte da mídia, do sistema político e de setores empresariais contra o nível da taxa de juros e das metas de inflação. Como estes temas não estavam presentes durante o aperto monetário em 2021 e 2022, o episódio revelou o desconforto político gerado pelas novas restrições institucionais.
As respostas, porém, foram firmes. O Congresso fez uma defesa enfática da autonomia, não houve mudanças de equipe e as estratégias do BC foram pouco afetadas. Se houve alguma influência sobre as decisões de política monetária, ela ocorreu no sentido oposto ao desejado pelos críticos, uma vez que a necessidade de preservar a credibilidade na gestão acabou por atrasar o início do processo de corte de juros.
Neste ano, a transição no comando do BC tem gerado boas surpresas. Depois de forte pressão política, seria natural esperar que a próxima gestão adotasse outras estratégias, mais alinhadas às escolhas econômicas do governo.
De fato, a visão majoritária dos analistas, explicitada diante do dissenso da reunião do Copom de maio de 2024, era a de que o BC seria mais tolerante com a inflação. Isso porque a opção política por mais gasto público implica, igualmente, a escolha da forma de seu financiamento, que inclui aumentos em impostos, dívida e inflação.
Ao contrário do esperado, no entanto, a condução da política monetária não parece compartilhar da opção política por mais gasto e inflação. Pelo menos por enquanto.
Em linha com a experiência internacional, a necessidade de construir reputação tem feito com que a troca de equipe seja acompanhada por uma postura cautelosa de todos diretores, tanto os indicados por este governo quanto pelo anterior.
Além do problema da credibilidade da nova diretoria, há bons motivos para uma postura mais conservadora. Os dados indicam que o nível da taxa básica de juros é insuficiente para desacelerar a economia, fazer a inflação convergir para a meta e ancorar as expectativas.
Estas leituras técnicas estão sendo protegidas pelo desenho institucional. Um BC formalmente independente, com decisões colegiadas, burocracia estabelecida e uma diretoria qualificada que precisa zelar por sua reputação profissional, tende a proteger suas decisões das pressões e ansiedades políticas associadas ao ciclo eleitoral de curto prazo.
Há uma lição também para o BC. Com a autonomia, as nomeações para a diretoria passaram a ter mais visibilidade, gerando, deste modo, maior interesse e peso político. Justamente por isso, a diretoria precisa cuidar de sua exposição política e evitar que suas preferências ideológicas sejam motivos de ataques à instituição.
Os ganhos de se proteger parte da gestão econômica dos ciclos eleitorais de curto prazo são vários. Dados os limites para aumento de impostos e endividamento, a independência do BC não deixa de ser um constrangimento a uma estratégia de expansão fiscal financiada por meio da inflação.
Com isso, a agenda incentiva a disciplina fiscal no médio prazo e a racionalidade na gestão, permitindo um debate público transparente e de melhor qualidade. O discurso da harmonização entre política fiscal e monetária, por exemplo, poderá finalmente mostrar a causalidade correta, com os gastos públicos explicando o nível de juros, e não o inverso.
A autonomia impõe também alguma disciplina política. Será estranho que a taxa de juros seja alvo de novos ataques, uma vez que foi o próprio governo que indicou os membros do BC.
Ao mesmo tempo, a política monetária pode contribuir com o esforço do governo em reduzir a assimetria de informações sobre suas reais intenções, levando a um quadro e menores incertezas e maior credibilidade na gestão econômica como um todo.
Há, sem dúvida, uma preocupação em mostrar que as estratégias populistas do passado não serão retomadas, o que pode ser feito por meio do compromisso com uma inflação baixa, realismo tarifário e corte de gastos.
A esperança é que o processo ajude a popularizar a ideia de que a função do BC não é a de gerar crescimento de curto prazo, mas sim suavizar os ciclos econômicos. Ao fazer com que a demanda seja compatível com as condições de oferta, é possível controlar a inflação e reforçar a estabilidade.
Por último, um BC não politizado eleva a credibilidade da gestão, ajudando a ancorar as expectativas e a controlar formação de preços na economia. Este é um tema importante. O histórico de inflação no Brasil faz com que seja difícil convencer os agentes de que uma estratégia de lenta convergência é diferente da simples opção de não convergência, como observado, por exemplo, entre 2007 e 2016.
Neste momento, em particular, a convergência da inflação pode ser um marco importante. Apesar de o Plano Real ter rompido com a tendência histórica de alta da inflação, os últimos 25 anos mostraram um IPCA oscilando mais próximo a 6,5%. Por muito tempo, a meta de inflação foi de 4,5%. Alcançar a meta contínua de 3,0% não deixa de ser um salto de qualidade do debate público.
Com inflação ancorada, a renda e as condições de consumo tendem a ser preservadas. Caso o BC tenha sucesso nesta tarefa, o resultado irá comprovar a tese de que a independência, efetivamente, limita o governo e traz estabilidade.
Ao final, o aprendizado é que a autonomia formal do BC é um avanço que reduz, ainda que não possa impedir, as chances de recaídas populistas. Com bons resultados econômicos, a agenda tem tudo para repetir a experiência do regime econômico adotado a partir de 1999, o chamado tripé macroeconômico.
Pode ser a vez da BC, com a autonomia se consolidando na sociedade e no meio político.