Contando com a sorte

Diante de um cenário global incerto, o caminho seria fortalecer os fundamentos domésticos e depender menos do humor sempre volátil do investidor externo.

Roberto Padovani
13 de maio 2024

O aumento da tensão geopolítica recente trouxe volatilidade financeira e um alerta de que o cenário global pode não ser favorável, sugerindo que o país deveria fortalecer seus fundamentos.

Embora as principais preocupações externas sejam conhecidas, a novidade das últimas semanas foi a mudança de postura do investidor. Os conflitos no Oriente Médio foram um gatilho que elevou a aversão a risco e fez com que temas como a política monetária norte-americana e a desaceleração global ganhassem ainda mais relevo.

Este novo ambiente traz repercussões para o Brasil. Do ponto de vista político, diferenciar a origem do choque é algo sensível, principalmente em um momento marcado pela competitividade eleitoral, tensão e polarização. A história e a literatura acadêmica mostram que a avaliação do governo tende a ser mais penalizada quando a fonte das turbulências é percebida como sendo doméstica.

Economicamente, no entanto, choques externos e gestão local não são eventos estanques. Bons fundamentos permitem que a economia resista melhor às mudanças de humor do investidor internacional. Diferentemente, quanto maior a fragilidade do cenário doméstico, maior a vulnerabilidade a instabilidades externas e seus impactos locais.

Foi a experiência de 2016. Depois de anos acumulando distorções e desequilíbrios domésticos, a crise global de energia em 2014 trouxe queda acentuada dos preços de petróleo e uma forte piora no crescimento local.

Naquele momento, as fragilidades locais potencializaram o choque externo. Os dados mostram que o desempenho do Brasil se descolou de outras economias emergentes e o país enfrentou sua maior recessão. Como resultado, a leitura foi a de que a crise foi gerada por erros locais, o que contribuiu para uma rápida e aguda queda da popularidade do presidente. O resto da história é conhecido.

O aprendizado, portanto, é que fortalecer os fundamentos locais é sempre importante, mas se torna central em momentos globalmente instáveis. Esta já era uma tese defendida por Maquiavel nos anos 1.500. Para ele, o príncipe não deveria contar com a sorte (fortuna), dado que ela muda o tempo todo. O foco deveria estar na competência (virtù), tornando possível enfrentar eventuais adversidades com maior tranquilidade. A sorte não se controla, mas a competência sim.

Esta leitura pode ser aplicada ao atual momento. Até aqui, o cenário externo tem ajudado e os eventos recentes não tiveram maiores repercussões políticas e econômicas. A tensão geopolítica no oriente médio em abril teve curta duração.

O episódio, no entanto, deveria ser lido como um alerta importante. Mesmo que haja boas razões para não se imaginar uma escalada dos conflitos geopolíticos, a dinâmica da inflação nos Estados Unidos tem se mostrado uma incógnita. Com a possibilidade de manutenção de juros elevados por mais tempo nos Estados Unidos, o crescimento da economia norte-americana pode perder fôlego e reforçar o desaquecimento já em curso na Europa e na Ásia.

Historicamente, ambientes de desaceleração global não favorecem os preços de commodities e os mercados emergentes exportadores de matérias-primas. Em situações adversas, há maior cautela e seletividade dos investidores e países como o Brasil tendem a ser vistos como mais arriscados. Atraindo menos fluxos financeiros, variáveis como dólar, inflação, juros, confiança e crescimento ficam pressionadas.

Neste contexto, as dúvidas locais voltaram a ganhar relevância e a sugestão de Maquiavel faz sentido. Seria prudente que o país fortalecesse seus fundamentos. Por um lado, as reformas feitas nos últimos anos, a mudança de patamar do comércio exterior, a inflação controlada e o corte dos juros têm feito com que o Brasil seja visto como um porto seguro diante de tantas incertezas globais.

Por outro, as contas públicas são uma fragilidade crescente, algo alertado por boa parte dos economistas há algum tempo. Embora a crise fiscal de 2016 tenha mostrado que o equilíbrio fiscal importa para aumentar a previsibilidade econômica e proteger investimentos, consumo e produção, o comportamento da despesa do governo observado ao longo dos últimos meses reflete uma preferência política por mais Estado e gasto público.

Esta preferência deverá ganhar força ao longo dos próximos meses. Não apenas há sempre imprevistos, como a tragédia climática no Rio Grande do Sul, mas o ciclo político dos negócios mostra que a competição política incentiva estímulos econômicos que favoreçam o crescimento de curto prazo e as chances eleitorais.

O que preocupa, no entanto, é que a pressão política por mais gasto vindas do Judiciário e do Legislativo se junta com a agenda do Executivo e conta com poucos freios institucionais. Mesmo com todos os avanços das últimas décadas, o desafio do país ainda está em construir regras fiscais sólidas, capazes de efetivamente controlar a despesa pública.

Neste caso, a atual estratégia de ajuste via receita possui pouco fôlego político e apenas atrasa o debate sobre o ajuste na estrutura do Estado. Ao mesmo tempo, comprimir despesas discricionárias não é algo sustentável e há poucos incentivos para reformas que permitam ao governo administrar os gastos obrigatórios.

Como resultado, a regra matemática do arcabouço fiscal não se mostra compatível com aumentos permanentes nas despesas, com os reajustes constitucionais para saúde e educação e com a política de ganhos reais do salário-mínimo, que pressiona os gastos com a previdência.

Esta foi, de certo modo, a experiência do teto de gastos aprovado em 2016. A ideia de que um limite constitucional para a despesa seria um incentivo para a sociedade fazer escolhas e priorizar programas de governo se mostrou inocente. Ao contrário, a história foi marcada por tentativas políticas contínuas para se driblar a própria regra. Mesmo sendo mais flexível, o arcabouço fiscal poderá ter destino semelhante.

Ao final, o que se espera é o aumento da exposição da economia brasileira a choques e uma maior volatilidade financeira, contaminando negativamente as expectativas de crescimento, de juros reais e da própria trajetória da dívida pública.

Este cenário não implica uma crise de curto prazo, dado que a deterioração fiscal tende a ser gradual. Com poucos instrumentos para controlar a dívida, no entanto, os riscos são crescentes. A saída será contar com a sorte de um ciclo global favorável.

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