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Ajuste fiscal deve ser postergado

Cenário econômico e poucos incentivos políticos reduzem as chances de uma reorientação da estratégia fiscal.

Roberto Padovani
26 fevereiro 2024

 

A divulgação do resultado das contas públicas de 2023 mostra que a questão fiscal continua sendo a principal vulnerabilidade econômica do País. Mais importante, o ambiente econômico e político incentiva a manutenção dos estímulos de política, o que tende a agravar a situação à frente.

Apesar de esperada, a deterioração de 2023 foi um sinal preocupante. O crescimento melhor que o esperado do PIB não impediu que a receita líquida do governo central recuasse. Não se confirmaram as avaliações mais otimistas de que haveria uma mudança estrutural na arrecadação que permitiria ampliar o espaço para o gasto público. Com a queda real nos preços de commodities e o uso de crédito tributário, a receita recuou 2% em termos reais, depois de um crescimento de 21% em 2021 e 8% em 2022.

Do lado das despesas, algum realinhamento de recursos fazia sentido depois de vários anos de represamento. A agenda de ajuste fiscal já apresentava sinais de esgotamento e o resultado eleitoral apenas reforçou a preferência social e ideológica por mais Estado e gasto público observada após a pandemia. Mesmo assim, a alta de 12% acima da inflação foi uma das maiores nos últimos 20 anos. Com aumentos generalizados e permanentes, a despesa como proporção do PIB saltou de 17% para quase 20%.

A combinação de queda na receita e aumento da despesa explica a reversão do resultado primário do governo central, que saiu de um superávit de R$ 46 bilhões em 2022 para um déficit de R$ 230 bilhões em 2023. Ao interromper a trajetória de melhoria registrada a partir de 2016, a dívida bruta voltou a subir depois do recuo de 2021 e 2022.

Os números fiscais de 2023, no entanto, contam apenas parte da história. Os desafios à frente são igualmente preocupantes e, por isso, a confiança no ajuste é baixa. Será preciso um volume significativo de recursos até 2026 para alcançar as metas propostas.

As diversas medidas anunciadas do lado da receita ajudam, mas não representam um sinal forte que ancore as expectativas. Além de muitas receitas não serem recorrentes, a estratégia é pouco transparente e depende de eventos de difícil estimação e antecipação, como decisões judiciais, revisão de isenções, novos impostos e recebíveis de petróleo.

Mais importante, mesmo que haja sucesso em alcançar as metas, o esforço seria insuficiente para estabilizar a dívida, cuja dinâmica é determinada por seu nível elevado e pelo fato de os juros reais serem maiores que a capacidade de a economia crescer.

O ponto é que não há bala de prata ou saída mágica. Sem um novo ciclo global de commodities e apoio da sociedade para mais aumento de impostos, a receita como proporção do PIB dificilmente irá se manter muito acima da média histórica de 18%. Não por outro motivo, os últimos anos construíram um consenso de que o equilíbrio fiscal depende mais do controle da despesa que da receita.

Isso não significa que corrigir gastos seja tarefa simples. A piora das contas públicas ocorre em um momento de experiências ruins e mudança de regras. Os últimos anos explicitaram a dificuldade política de se respeitar limites de gastos e controlar despesas obrigatórias. Além disso, o desempenho das contas do governo em 2023 mantém viva na memória a gestão do período de 2006 a 2014, quando a despesa cresceu em termos reais a um ritmo anual médio próximo a 7,5%.

O contexto político atual também reduz as chances de uma mudança de estratégia. Tradicionalmente, os inícios de mandatos são marcados por medidas mais duras de organização das contas públicas, o que abre espaço para aumento dos gastos no ciclo eleitoral seguinte. O trabalho seminal de William Nordhaus de 1975 sobre o ciclo político dos negócios mostra que as gestões fiscais e monetárias podem ter como objetivo estimular a economia no curto prazo, seguindo o calendário das eleições.

Não foi o que se observou em 2023 e a opção foi por mais gasto no início do governo para reduzir as tensões políticas no País. Esta inversão, no entanto, não garante que os ajustes irão ocorrer durante os ciclos eleitorais de 2024 e 2026.

Da mesma forma, a economia e os mercados financeiros são hoje uma restrição fraca às escolhas de política. Os dados do FMI indicam que, com a pandemia, houve uma piora fiscal generalizada no mundo. Ainda que o caso norte-americano seja destaque, os países emergentes apresentam maior dificuldade de ajuste.

Neste ambiente, o Brasil não é visto como a pior história. Além das reformas feitas nos últimos anos, inflação e juros estão em queda, o desempenho das contas externas é positivo e o crescimento tem sido recorrentemente melhor que o esperado após a pandemia. Com isso, a deterioração fiscal não implica uma crise aberta de curto prazo, como foi o caso em 2015.

O que a expansão do gasto faz é definir novos patamares de equilíbrio para inflação e juros, limitando o crescimento e tornando o País vulnerável a choques. Mas como estes fatores são abstratos, dificilmente representam um constrangimento político imediato que incentive uma rápida reorientação das despesas.

Neste caso, baixo crescimento global, contexto político doméstico e leniência dos mercados fazem com que o déficit seja também de credibilidade, mesmo com o governo mostrando intenção em elevar receitas e equilibrar suas contas. Será preciso construir reputação para convencer que as regras fiscais serão mantidas ao longo do tempo, permitindo superávits crescentes e mostrando capacidade financeira e política para limitar o endividamento público.

Não por outro motivo, a mediana das projeções de mercado coletadas pelo Banco Central e pelo Ministério da Fazenda indicam resultados primários insuficientes para estabilizar a dívida, que pode subir cerca de 20 pontos percentuais como proporção do PIB ao longo da próxima década e voltar para os patamares recordes de 2020, pior momento da pandemia.

Embora haja hoje mais instrumentos para correção de rumos, como Fabio Giambiagi e Guilherme Tinoco mostraram em trabalho recente, os incentivos correntes são no sentido de manter os estímulos por mais tempo que o necessário. Sem custos políticos e legais, o governo tem reforçado sua preferência pelo gradualismo, o que reduz a probabilidade de contingenciamentos e eleva a de mudança de metas.

Esta decisão, porém, tem custos. Ao postergar os ajustes, a dívida pressiona os juros, reduz o crescimento e cria um círculo vicioso. Portanto, ainda que a estratégia fiscal tenha tido sucesso em impedir uma crise de curto prazo, o tema da dívida pública é grave e deve dominar o debate dos próximos anos.

 

 

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