Ao interromper a cultura da inflação, melhorar a qualidade do debate público e permitir avanços institucionais, o Plano Real construiu um país bem melhor que o de 1994.
Roberto Padovani
10 de julho 2024
Mesmo depois de trinta anos, o Plano Real continua a ser lembrado e comemorado. Nos últimos dias foram produzidos vários artigos, entrevistas e eventos. Em um momento em que se teme retrocessos na gestão econômica, o sucesso da estabilização chama ainda mais atenção.
O impacto da estabilização foi marcante. Depois de o IPCA ter alcançado patamares de 7.000% em 1990 e de 5.000% em junho 1994, a inflação recuou continuamente a partir daí. Em quatro anos, o país conquistava uma inédita estabilidade, com a inflação alcançando 1,6%.
O sucesso da estabilização em 1994 pode, em parte, ser explicado pelo aprendizado com as tentativas fracassadas anteriores, como foi o caso dos planos Cruzado, Bresser, Verão e Collor.
O legado da abertura comercial no início dos anos 1990 foi fundamental para o sucesso do Real, ampliando a oferta de bens e a competição nos mercados e, deste modo, ajudando a disciplinar preços.
Da mesma forma, o congelamento de preços mostrou-se pouco efetivo, dado os desequilíbrios de preços relativos gerados pelas taxas elevadas de inflação. Velocidades diferentes e descoordenadas dos reajustes diários tornavam praticamente impossível fixar preços em um patamar que equilibrasse receitas e custos das empresas.
O resultado comum era desabastecimento e a inviabilidade econômica e política do próprio congelamento. Os fracassos, contudo, não eram neutros. Com medo de novos congelamentos, os reajustes se tornavam mais frequentes e defensivos, acelerando ainda mais a inflação a cada novo descongelamento.
Paradoxalmente, no entanto, esta dinâmica levou a um desgaste crescente que, como sugere a literatura acadêmica sobre a economia política das reformas, incentivou o governo a agir e tomar riscos, ao mesmo tempo em que reduziu a força de grupos contrários à agenda da estabilização.
Os benefícios do controle de preços eram tão evidentes para a maioria que o peso das acusações de que a agenda era “neoliberal” e fazia “populismo cambial” com objetivos eleitorais ficou em segundo plano.
Como resultado, a ideia do congelamento surpresa foi substituída pelo anúncio prévio de uma nova unidade de conta, a URV. Em apenas quatro meses, a demanda por um padrão monetário estável levou a uma aceitação rápida e voluntária da nova referência, coordenando os reajustes de preços e evitando os desequilíbrios comuns dos congelamentos. Com preços estáveis em URV, o governo pode trocar o padrão monetário em julho de 1994.
A partir daí, a administração do plano se baseou na política cambial. Com instrumentos fiscais e monetário pouco eficientes, o regime de taxas administradas do câmbio foi usado como principal âncora nominal, referência estável para a formação de preços.
Mais importante, ao acabar com a espiral inflacionária que mantinha a sociedade presa às necessidades de curtíssimo prazo e dominada pelos conflitos distributivos, outros temas passaram a ter visibilidade. Tornou-se possível um debate público de melhor qualidade e a construção de consensos para se redesenhar as políticas públicas.
Foi o caso da necessidade de melhores instrumentos de controle da economia, permitindo que o governo pudesse passar a responder às oscilações econômicas. O fim da inflação afetou a receita de bancos e governos, levando a uma crise fiscal e bancária. Ao mesmo tempo, o aumento do consumo gerado pela preservação da renda real e a valorização cambial que acompanhou a administração inicial do Plano levou a um quadro de déficits comerciais.
O superávit comercial médio de US$ 13 bilhões ao ano nos dez anos anteriores se transformou em um déficit anual médio de US$ 5 bilhões entre 1995 e 2000. Com reservas internacionais de apenas US$ 50 bilhões em média, a sequência de choques externos desfavoráveis do período levou o país a uma crise cambial.
O aparecimento destes novos desequilíbrios foi um incentivo para que outras âncoras nominais fossem usadas para controlar preços. Depois de 1999, um novo regime de política econômica foi desenhado com novas regras fiscais, monetárias e cambiais.
Outras questões também passaram a ser discutidas, como programas sociais, escolhas orçamentárias e o papel do Estado, com os programas de privatização e a criação de agências reguladoras. Algo impensável antes de 1994.
Por último, o Plano Real permitiu mudar a agenda política do país. Com a estabilização, a noção de preços relativos foi recuperada e mudou a vida cotidiana da população. A cultura da inflação foi interrompida.
Apesar de vários choques, o IPCA oscilou nos últimos 23 anos ao redor de 6,4%, o nível médio mais baixo em mais de 100 anos. A sociedade se mostra intolerante com altas de preços, o que produz impactos sobre o ambiente político. Foram os casos, por exemplo, em 2015 e 2021. Não por outro motivo, o desenho institucional na gestão econômica foi preservado mesmo com diversas transições políticas.
Por tudo isto, o Real foi um divisor de águas. Permitiu não apenas avançar na construção de um país institucionalmente melhor, mas fez com que a estabilidade macroeconômica, em um país cujo setor privado é diverso e relevante, passasse a ser um valor importante. Graças a isso, o Brasil de 2024 é bem melhor que o de 1994.